terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Cicatriz

- Já reparou que a gente sempre só se encontra depois de uma da manhã?
- Já reparou que a gente sempre começa ou termina na praia?
- Hoje a gente vai terminar lá em casa.
O mundo é uma grande cama e dá pra ouvir gente cochichando. Ela gosta ainda mais quando tem gente assistindo. Ele também. Amsterdam carioca e o mar por baixo do vestido dela. Dois vira-latas sem vergonha na cara nem nada pra perder. Falam sobre tudo e sobre nada, menos sobre si mesmos. É lindo e é horroroso.  Nos breves momentos de pausa e lucidez, se enxergam mais longe que a carne, mas fingem que não viram e não falam nada. Foi correndo comprar água só pra não abraçá-la. 
Gente que vive perdida no tempo vivendo o hoje, que amanhã será nada além de ontem. Gente que adora gente. Gente que nem a gente. Gente que já nem sente. Muita doideira pra um crânio só, nisso eles são ótimos em dividir. Atentados ao pudor.  Teletransporte indecente. 
- Não sabia que você fumava. Me dá um aí! 
- Pode pegar, só não tem fogo.
- Fogo eu tenho.
- Divide comigo.
Pouco cigarro pra muita gente, e enquanto ela o beija ele só pensa no cigarro queimando na mão dela sem ninguém pra fumar.  O pensamento vai de uma galáxia a outra enquanto ela o leva para seu quarto. Nem deu pra fumar direito. Entremeios e gemidos, às vezes eles se olham sem de fato se ver. E voltam pro planeta Terra. Conversando mais sem dizer nada do que quando falam alguma coisa, os corpos falam, a carne grita. A carne é sincera, a carne é maravilhosa. E eles se entendem muito bem. Mesmo tipo sanguíneo, mesmo signo, concurso de safadeza, competição de quem faz mais gostoso. Tudo em nome do esporte. Qualquer coisa que afaste o tédio.
Mordeu tão forte que sangrou. Acariciando a arcada dentária dela marcada no ombro dele, disse sorrindo que ela lhe tomou um pedacinho. Banho dado, banho tomado, carne crua, beijo roubado. Quando o fogo se abranda tudo fica humano demais. Entre afagos, peles e pelos a coisa começa a desandar. 
- Às vezes você quase que cuida de mim.
- Melhor a gente se cuidar com isso.
- Pois é...
Silêncio. Trocaram carinhos mas não trocaram mais nenhuma uma palavra. Enquanto ela dormia o gato pulou na barriga dele pedindo cafuné. Cochilou agoniado por não ter escovado os dentes. Acordou cansado pela metade da manhã dizendo que precisava sair correndo pois tinha algo pra fazer daqui a pouco. Ela entendeu o recado e consentiu. Isso foi longe demais e esse tipo de coisa não dá pra tolerar.  Um último cigarro depois de se vestirem apressados e ela o leva até a porta sorrindo sem graça. Se despediram sem nem se beijar falando de marcar a próxima vez já sabendo que essa era a última. Mesmo apertado para ir ao banheiro, foi embora com um sorriso cínico de alívio, sabendo que cachorro que mija na rua se satisfaz mais que cachorro que mija em casa. Saiu coçando a mordida pensando que vai virar cicatriz. Cicatriz daquelas gostosas de lembrar. 

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